sexta-feira, março 18, 2011

De Getúlio a Lula: Como tudo começou com Maomé.









     Maomé é o grande profeta do islã. É considerado o último e mais recente profeta do Deus Abraão. No ano 612, após receber a revelação, inicia sua pregação. A missão é espalhar a boa nova pelo mundo afora, a jihad. A expansão muçulmana é um dever, não uma possibilidade. Assim começa a grande jornada árabe pelo mundo, passando e início pelo norte da África, no território que ficou conhecido como África Branca.

Maomé, principal responsável pela expansão árabe.

     Dali, o elo mais próximo com a Europa era a península ibérica. Os mouros (denominação que refere aos muçulmanos) invadiram a região, principalmente o sul de onde hoje é Portugal, mudando para sempre os rumos da história, trazendo repercussão até os dias de hoje. Os problemas políticos atuais do Brasil tem sua origem em Maomé. Leia-se: Origem histórica. A bem da verdade, os mouros praticamente não deixaram influências em nossa cultura, resumindo-se as suas contribuições a algumas poucas palavras de nosso vocabulário, na maioria das vezes usadas para descrever alimentos, comércio, e algumas ciências. Para as questões políticas o vocabulário continuava latino, pois essa ainda era a grande influência.


"Os problemas políticos atuais do Brasil tem sua origem em Maomé"


     É preciso registrar, porém, dois fatos: 1) os mouros tinham grande vocação para o comércio; 2) O norte de Portugal era cristão, o que fez com que o território permanecesse sempre em guerra, sendo esse, precisamente, o marco histórico que permite traçar uma linha mestra em nossa história que vai até Lula (possivelmente Dilma também). “Portugal nasceu com a espada na mão”, diz uma frase clássica da história portuguesa. As guerras enfraqueceram a nobreza local, impedindo que ali surgisse o Feudalismo, como no resto da Europa. O que surgiu então? Patrimonialismo.

"O príncipe, em Portugal, tratava os bens da Coroa como se seus fossem, sem qualquer distinção do patrimônio. No patrimonialismo o Estado é administrado como um bem familiar."


     Don Afonso Henriques expulsa os mouros e funda o Reino de Portugal, lançando uma tradição de
Estado Patrimonialista que permanece até hoje. Esse modelo de Estado é marcado pela indistinção entre os conceitos de público e privado. O príncipe, em Portugal, tratava os bens da Coroa como se seus fossem, sem qualquer distinção do patrimônio. No patrimonialismo o Estado é administrado como um bem familiar.


Raymundo Faoro: Além de grande intelectual,
presidiu a OAB durante o período de transição democrática.


     Há dois autores que permitem essa ampla análise desse fenômeno no Brasil: O grande sociólogo e jurista brasileiro Raymundo Faoro, e aquele que é possivelmente o maior nome da sociologia, o alemão Max Weber. Faoro é quem mostra como essa tradição se desenvolveu no Brasil, em sua grande obra “Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro”, em uma análise que vai das origens portuguesas até Getúlio Vargas. De Weber vem a contribuição a título de referencial teórico.

O grande mestre da sociologia Max Weber

     Quando se fala em patrimonialismo, se remete à ideia presente em “Economia e Sociedade” de que há basicamente três tipos de dominação: carismática, tradicional e racional. Esta última, é a que se estabeleceu como padrão nas sociedades ocidentais modernas. É a dominação que se estabelece através de leis e instituições, tendo a imparcialidade e impessoalidade do Estado e sua administração pública como grande marca. Já a tradicional é aquela em que as pessoas obedecem em função da tradição: “é assim porque sempre foi assim”. Mais do que isso, ela é extremamente pessoal. As leis e o aparato burocrático até existem, e são fortes, mas o que é definitivo é a relação pessoal que se estabelece com o governante.

"As leis e o aparato burocrático até existem, e são fortes, mas o que é definitivo é a relação pessoal que se estabelece com o governante."

     Feita essa breve apresentação, é possível analisar elementos políticos de Getúlio Vargas e Luiz Inácio Lula da Silva, dois dos mais importantes presidentes brasileiros, e ícones de nossa política, para avaliar em que medida se assemelham e quais as suas contribuições, tanto boas como ruins. Vale ressaltar que Lula não tem a magnitude de Vargas, coisa que nem mesmo o momento histórico permitiria. Contudo, o patrimonialismo é uma marca forte das duas gestões, uma tradição que se acentua com essas grandes lideranças, mas que é preciso frisar que é uma tradição existente em toda história brasileira.


"Lula não tem a magnitude de Vargas, coisa que nem mesmo o momento histórico permitiria. Contudo, o patrimonialismo é uma marca forte das duas gestões"


     Vargas surge em meio ao grande fracasso que foi a República Velha, uma “república” proclamada através de um golpe militar, com um sistema eleitoral absolutamente desacreditado, com baixíssima participação “popular” e marcada pelo coronelismo. Entre os grandes méritos de Getúlio está desmontar o coronelismo, que só foi possível através da forte industrialização do país. Ele também é responsável por praticamente fundar o Estado Moderno brasileiro. Com ele viramos um país urbano e industrializado. No campo político, criou a justiça eleitoral, com seu código eleitoral, estendendo o voto a todos, nos moldes democráticos que conhecemos hoje. Do ponto de vista da administração pública, instituiu um modelo burocrático, que tem como marca a impessoalidade, instituindo os concursos públicos como regra de acesso aos cargos públicos.


     A par dos avanços, sobe ao poder com Getúlio a forte tradição patrimonialista existente no Rio Grande do Sul, Estado que graças às guerras constantes para garantir a zona de fronteira sempre teve presença forte de caudilhos, chefes militares que, quando não em guerra, não hesitavam em usar suas tropas para benefícios próprios. Outra forte característica patrimonialista de Vargas é constante exaltação da imagem do presidente, elemento típico de dominação tradicional, onde a pessoa do governante está acima das instituições, dos partidos, das leis. Outra grande característica do governo varguista foi a forte centralização, que concentrou poderes na União, afastando o poder cada vez mais das realidades mais próximas do cidadão. Tudo isso não poderia resultar em outra característica que não o autoritarismo, vislumbrado pelo grande período ditatorial que se sucedeu, bem como a grande concentração de poder nas mãos do presidente, que conduziu o país tal como faziam D. Pedro, Dom João I, D. Afonso Henriques. Nesse contexto, o corriqueiro é usar a máquina pública para beneficiar particulares, geralmente correligionários, por meio, principalmente, de cargos públicos, gerando grande inchaço da máquina pública.


"O corriqueiro é usar a máquina pública para beneficiar particulares, geralmente correligionários, por meio, principalmente, de cargos públicos, gerando grande inchaço da máquina pública."


     Mesmo com tudo isso, Vargas teve como grande marca a popularidade. Foi sem dúvida um dos presidentes mais populares do país, talvez o mais popular de todos. Grande parte disso foi graças aos fortes avanços sociais, principalmente no que diz respeito à proteção dos trabalhadores, que até hoje gozam das garantias trabalhistas conferidas principalmente pela CLT. Isso também era patrimonialismo: para se manter no poder é preciso fazer concessões. Vargas o fez com a maestria de poucos. Criando o ministério do trabalho, ainda faz um forte trabalho de cooptação dos sindicatos, tornando-os quase que escravos do Estado.


Fernando Henrique Cardoso: mesmo sendo profundo conhecedor
do patrimonialismo, prometeu "acabar com a Era Vargas"
     Lula assume em momento histórico bastante diverso de Vargas. Todavia, muitas semelhanças ocorrem, e, principalmente, o patrimonialismo, apesar da promessa de Fernando Henrique Cardoso de “acabar com a Era Vargas”, ainda existia. De Vargas a Lula tivemos um breve período democrático, um tanto instável, o qual foi sucedido pela ditadura militar, ápice do patrimonialismo, onde o “estamento” (termo presente tanto em Faoro como em Weber) toma o poder, deixando de ser mero quadro burocrático a serviço do governante, para de fato governar. Depois disso, vem a grande mudança, a Constituição de 1988, a redemocratização. No governo Fernando Henrique Cardoso tivemos uma série de importantes reformas administrativas que tinham finalidade moralizar a administração pública, já que o PSDB se revelou como principal herdeiro do liberalismo, expulsando o patrimonialismo. Por óbvio que a tentativa foi infrutífera. A descentralização promovida pelas privatizações serviu para o clientelismo, principalmente através do expediente de “emprego público” utilizado pelas agências reguladoras, ao contrário do que acontece com os servidores públicos. Se isso não bastasse, o governo FHC revelou forte faceta autoritária pelo fenômeno do decretismo, tendo governado majoritariamente por medida provisória, pra não falar dos escândalos de compra de parlamentares para aprovação de emenda constitucional permitindo reeleição.


     É desse caldo histórico que surge Lula. Um período em que a esquerda há décadas não chegava ao poder. Apesar disso, o período é democrático, o mais estável de todos, e com grandes mudanças já feitas, não possibilitando grandes revoluções. De fato, as poucas e importantes reformas que precisariam ser feitas, como tributária e política, pra não falar em áreas como educação, não foram feitas. Com razão Plínio de Arruda disse que Lula foi o governo do “melhorismo”. Sem revoluções, mas com grandes melhoras.




"Lula foi o governo do “melhorismo”. Sem revoluções, mas com grandes melhoras. A esquerda no poder não fez revolução, mas tratou de temas importantes, como a questão social."

Lula: Maior aprovação que um presidente já alcançou no Brasil
     A esquerda no poder não fez revolução, mas tratou de temas importantes, como a questão social, representada principalmente pela redução das desigualdades, com programas sociais que emanciparam parcelas importantes da população, antes submetidas à miséria, bem como avanços na área da educação, principalmente de nível superior, que abriu suas portas à outras classes sociais, antes excluídas dos níveis mais altos de nosso sistema de educação. A economia, a par da distribuição de renda, seguiu a linha do governo FHC, e teve substanciais melhoras. Tudo isso, somado ao forte carisma do presidente Lula fizeram com que ele registrasse uma aprovação de 87% da população, a maior de um presidente do Brasil, e uma das mais expressivas do mundo, o que projetou o governante e o país internacionalmente.


     Todavia, como diria Raymundo Faoro, “É muito difícil que nós, tendo saído de um tipo de regime como saímos, acreditemos que tenhamos entrado num outro tipo de regime sem nenhum resquício daquele”.[1]Faoro fala da ditadura e de todo histórico de patrimonialismo que tivemos. A transição foi em direção à democracia, mas problemática. A constituinte, não foi autônoma. Era um congresso constituinte, o que fez com que os parlamentares que estivessem no poder inserissem diversos mecanismos na Constituição que só possuem uma função: permitir que quem está no poder lá se perpetue.


     Entre esses mecanismos estão os cargos em comissão: Brecha na regra do concurso público que tem servido a nomeações de pessoas que, muitas vezes, não preenchem os requisitos de aprovação em concurso público. A regra é outra: não é o mérito, mas a relação pessoal com o governante, expressa na própria Constituição através do requisito da confiança pessoal. O instituto vai na contramão de toda ideia de administração pública burocrática, impessoal, racional e eficiente. No governo Lula o expediente foi amplamente utilizado para o clientelismo, fenômeno típico das ordens patrimonialistas. Há no Brasil, hoje, 23 mil cargos em comissão. [2] Nos Estados Unidos da América são apenas em torno de 9 mil, mesmo com a enorme diferença de tamanho dos dois, já que o Brasil conta 190 milhões de pessoas (2010) e os Estados Unidos com uma população de 308 milhões (2010). Nos países da Europa, há menos de 500 em países como Alemanha e França. Ou seja, mesmo a Constituição estabelecendo que eles são exceção à regra do concurso público, são utilizados em larga escala. [3]

"Há no Brasil, hoje, 23 mil cargos em comissão. Nos Estados Unidos da América são apenas em torno de 9 mil."

     O problema dos Cargos em Comissão é geral, não específico do governo Lula, sendo um problema em todo país. Todavia, com Lula se acentuou muito. Há outros fortes elementos patrimonialistas: o PT tem sido constantemente acusado de aparelhamento partidário através das agências reguladoras, por exemplo. Mesmo não estando na esfera da administração pública direta, do qual os Cargos em Comissão dão conta do clientelismo, há o emprego de correligionários na administração indireta. Quanto aos sindicatos, Lula copiou Getúlio: fez com que a grande maioria dos sindicatos fosse cooptados, não tendo o governo muitos históricos de revoltas sindicais, como em outros tempos. Se no primeiro governo, a marca foi o mensalão, prática que não é novidade nenhuma em nossa história, no segundo o governo aprendeu a lição e foi por um caminho muito mais fácil: em vez de comprar parlamentares para conseguir aprovação, manchando a imagem do partido, ferindo a legalidade, buscou o “diálogo”, que na política só se faz tendo uma moeda de troca: Cargos públicos. No segundo mandato o centrão toma conta, as amplas alianças deixam sua marca e o governo passa a cooptar os partidos antes opositores, para através das benesses dos cargos públicos, tanto políticos como cargos em comissão, conseguir a aprovação de seus projetos no congresso.

Cinema como estratégia de fortalecimento da imagem pessoal

     Lula ainda investiu na imagem pessoal. Não há dúvidas de que ele hoje é muito maior que o PT. Seu poder é pessoal, e não institucional. Não bastasse a já boa imagem, ainda investiu em um filme que contava sua vida, reforçando a imagem de líder carismático.


"O elemento comum entre Lula e Vargas, e que é presente em toda história brasileira, é o patrimonialismo."


     Esse é o elemento comum entre Lula e Vargas, e que é presente em toda história brasileira: o patrimonialismo. Ele surge por causa de Maomé, mas se perpetua graças a habilidade de quem está no poder de lá se manter, e ao enfraquecimento dos adversários políticos. O ambiente de baixo nível de educação, más condições sócio-econômicas e baixa participação política favorecem a perpetuação dessa realidade, e o surgimento de líderes carismáticos como Lula e Getúlio, figuras emblemáticas, que conseguem unir de forma peculiar fortes avanços com o retrocesso patrimonialista que tanto prejudica a democracia.

Getúlio e Lula: Avanços sociais e econômicos como marca da gestão
"O ambiente de baixo nível de educação, más condições sócio-econômicas e baixa participação política favorecem a perpetuação dessa realidade, e o surgimento de líderes carismáticos como Lula e Getúlio"



     Esse texto tem por base as pesquisas que realizei em função da minha dissertação de mestrado, defendida perante o Programa de Pós-Graduação em Direito da UNISINOS. A forte crítica ao patrimonialismo não representa uma crítica partidária, o que seria contraditório, pois quem me conhece sabe que defendi abertamente minha preferência política pela candidata Dilma Rousseff. O problema do patrimonialismo é grave, mas é presente em toda história brasileira, ao contrário dos avanços sociais, que no Brasil se fazem em raras oportunidades.

Principais referências

CARDOSO, Fernando Henrique. Capitalismo e escravidão no Brasil meridional: o negro na sociedade escravocrata do Rio Grande do Sul. 3. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991
FAORO, Raymundo. Os donos do poder: Formação do patronato político brasileiro. 3°ed. São Paulo: Globo. 2001
HOLANDA, Sergio Buarque de. Capítulos de história do Império. São Paulo: Companhia das letras. 2010
SANTOS, Wanderley Guilherme do.  O ex-Leviatã brasileiro: do voto disperso ao clientelismo concentrado. Rio de Janeiro: civilização brasileira. 2006
SCHWARTZMAN, Simon. Bases do autoritarismo brasileiro. 4.ed. Rio de Janeiro: Publit Soluções Editoriais. 2007
WEBER, Max. Economia e sociedade. Brasília. Universidade de Brasília. 2009 v.1.
 



[1] FAORO, Raymundo. A democracia traída. São Paulo: Globo. 2008. p. 75
[2] Link disponível apenas para assinantes: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/brasil/fc0102201002.htm
Para não assinantes, a notícia foi reproduzida no blog do jornalista Ricardo Noblat: http://oglobo.globo.com/pais/noblat/posts/2010/02/01/lula-dobra-criacao-de-cargos-de-confianca-no-2-mandato-262283.asp
[3] Disponível em http://www.gazetadopovo.com.br/vidapublica/conteudo.phtml?id=808061&tit=Elevado-numero-de-cargos-em-comissao-facilita-o-nepotismo&tl=1


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