terça-feira, julho 01, 2008

O invisível é essencial aos olhos.



Me surpreende como ainda hoje se leva a sério aquela frase meiga, porém fantasiosa, do Pequeno Príncipe que diz que o “essencial é invisível aos olhos”. De fato, a idéia não é novidade, tampouco é inédita. O dualismo essência/aparência é dos mais antigos na história do pensamento. Platão, mais de 300 anos antes de Cristo, já nos remetia para um “mundo das idéias” onde residiria essa tal “essência”. E praticamente durante toda a história do ocidente se levou a sério isso. Se criou inclusive uma espécie de desprezo ao real, já que como no pensamento de Platão, tudo de ruim está na realidade. Se a realidade é ruim é porque ela não corresponde ao mundo das idéias. Se o real não está bom, é porque não foi feito conforme o essencial. Assim se criou o dualismo corpo/alma. À alma tudo de mais perfeito, ao corpo as imperfeições.

A idéia foi incorporada pela Igreja Católica. Nada de novidade. O essencial agora virava o divino. Com o Iluminismo apenas se trocou uma coisa pela outra. Agora a razão era o único meio de se chegar ao essencial. Ainda com a dicotomia corpo-alma, essência-aparencia. Em Descartes, por exemplo, através de um método pode se chegar a compreender perfeitamente a essência das coisas. De novo, como se as coisas tivessem uma essência, uma verdade por trás delas, e que a aparência fosse um dado dispensável.

Penso que acrescenta mais pensar que “o invisível é essencial aos olhos”, como nomeei esse texto. Também penso que a crítica da fenomenologia, no terreno da filosofia, há muito acabou com esse debate acerca da essência das coisas. Não existe uma essência, não existe uma verdade absoluta que esteja posta. Tão pouco se existir vai poder ser apreendido pelo ser humano. O que existe é um humano, que antes de mais nada é um interprete, que compreende e interpreta tudo ao seu redor.

Não existe uma mera aparência a ser dispensada, existe aquilo que vemos e compreendemos, que permite que juntos possamos construir o sentido. As coisas são o que são. Mas ainda assim ficou para trás um pequeno detalhe: O invisível e a diferença.

Uma coisa só é o que é porque não é aquilo que também poderia ser. O sentido se constrói na diferença, e só compreendo uma coisa em contraposição com tudo aquilo que ela NÃO é. Por isso Heidegger diz que o Ser só tem sentido em contraposição com o nada. Simplificando: só compreendo que uma pessoa é alta porque há pessoas que são baixas. O vermelho só existe porque existe também o azul. E quando percebo que uma cor é vermelha, percebo que assim o é porque não é nenhuma das outras cores existentes.

Testes já comprovaram cientificamente a existência dos chamados pontos-cego em nossa visão. São regiões onde não enxergamos. São o nada. Paradoxalmente, esses testes demonstraram que é justamente a existência desses pontos que nos permitem enxergar. Isso acontece porque só compreendemos o que enxergamos porque há algo que não é enxergado. Isso acontece porque o invisível é essencial aos olhos. O invisível torna o visível possível.

Interessante seria lançar uma reflexão sobre essa nossa sociedade de tantas diferenças. Mais fácil fica de perceber que só há mais riqueza porque há mais pobreza. Só existe tanta fartura em nossas mesas porque há tantos milhares que passam fome. A conscientização disso levaria a uma verdadeira ética do reconhecimento. Antes que ver na diferença tudo de ruim, deveríamos pensar na importância delas para nossa construção cultural.

Por aí passa o debate pela inclusão das minorias. São raças, etnias, culturas, povos, que vivem às margens da sociedade, mas que muito têm a acrescentar. Mas há outras diferenças que nos custam caro. Não por acaso muitos quiseram acabar com a riqueza. Outros tantos sonham com o fim da fartura, pois talvez assim não exista mais fome, e não exista mais pobreza.

Existem muitos “invisíveis” na sociedade contemporânea. Eles não são visíveis para o governo, eles não são visíveis para as elites, e eles não são visíveis para a classe média. Vivem num mundo invisível, que muitas vezes são chamados de “favela”. Mas causam descontentamento quando saem de sua invisibilidade para bater a nossa porta, para nos parar num sinal, ou simplesmente desfigurar a paisagem que gostamos. Como diz a letra de Max Gonzaga, “Toda tragédia só me importa quando bate em minha porta, porque é mais fácil condenar quem já cumpre pena de vida”.

Lembro-me do filme Ônibus 174, que relatava a tragédia ocorrida com o ônibus de mesmo nome. Na ocasião uma mulher foi morta em uma ação mal sucedida do BOPE ao tentar repreender o seqüestro empreendido por Sandro. A tragédia e as diversas horas de tensão foram amplamente televisionadas. Mas em particular o que mais chama atenção é a frase na capa do filme: “Sandro era invisível à sociedade, até que entrou no ônibus 174”.

Se alguma coisa é visível e notável, assim o é porque algo é invisível. Mas um dia poderá deixar de ser. Assim é a vida, onde, como no rio de Heráclito, tudo muda o tempo todo e nada permanece. E sempre há a diferença, porque o invisível é essencial aos olhos.