sexta-feira, maio 20, 2011

O problema da judicialização da saúde no Brasil

Em nosso país, por uma distorção, a implementação das políticas públicas saiu da órbita dos Poderes Executivo e Legislativo e migrou para o Poder Judiciário. O número de demandas foi tão grande que fez com que o STF realizasse uma audiência pública. É a judicialização da política, que por um lado prestigia o Poder Judiciário com discussões que são vitais para o país, mas por outro atesta a falência na resolução dos conflitos nas esferas que lhe são próprias. O Judiciário é sobrecarregado com inúmeras demandas e acaba por se tornar moroso devido à excessiva litigiosidade.
 A sociedade brasileira, por um lado e os poderes públicos por outro, são  pouco afetos ao cumprimento espontâneo do direito e por vezes apostam no descumprimento, pois poucas pessoas
reclamam e das que se queixam a solução por vezes tarda. Diante deste panorama, a ideia básica de constitucionalismo de submissão dos cidadãos e autoridades públicas à Constituição, ainda é um desiderato. A Constituição como norma superior que coordena a conduta dos poderes públicos e da sociedade, carece de cumprimento substancial.
O direito social à saúde é o que adquiriu maior debate acadêmico e  número de ações na esfera judicial, em prol da efetividade. A acessibilidade ao Sistema Único de Saúde - SUS é de grande vulto, o que dificulta e  torna mais complexa a resolução do conflito. Cerca de 180 milhões de brasileiros são potenciais usuários do sistema. Destes, 2/3 dependem exclusivamente do SUS, quais sejam 118 milhões de pessoas.  Estas vultosas cifras estatísticas evidenciam a necessidade de critérios claros para atendimento das demandas existentes e  a incorporação de novas tecnologias, na área médica que pautarão novas demandas.
O Congresso Nacional que deveria promover a regulamentação,  no tocante aos percentuais de investimento da União, Estados e Municípios, até agora não o fez. Existe somente  o PL 306/2008, decorrente da propositura de regulamentação dos §§ 2º e 3º do art. 198, trazidos pela EC nº 29/2000. Ou seja, passaram-se 9 anos e não houve a elaboração da legislação que o país tanto necessita.  O Executivo que deveria investir percentuais, por vezes, não o aplica de forma séria.
Como causa do não funcionamento as demandas acabam no Poder Judiciário que, na maioria das vezes, oferece uma solução individualizada para os casos, em detrimento da construção de uma solução coletiva, reforçando este aspecto da pessoalidade. Compreensível, em muitos casos, devido à situação aflitiva no qual se vê o juiz, diante da enfermidade de uma pessoa, sem vislumbrar o sistema como um todo. Tudo isto serve para agravar o problema, quando é concedido determinado medicamento, sem atenção ao contexto global, reforçando ainda mais o caos no sistema. 
Neste contexto, pergunta-se: As estruturas burocráticas aperfeiçoam/democratizam as políticas públicas de saúde e a sua implementação pelo Poder Judiciário? Indagando de outra maneira: a estrutura do SUS, criada pela Constituição Federal, consegue implementar o direito à saúde. A solução foi pretenciosa,  no sentido de criar uma macro estrutura envolvendo os três entes da federação e com 180 milhões de possíveis demandantes.
Assim, no caso da saúde o alerta que se instaura é no sentido de que o deslocamento do foro para a estatuição das políticas públicas  deve ser o legislativo e a sua implementação pelo  executivo. Na omissão ou implementação de novas políticas, o judiciário pode cumprir um papel importante com o processamento de ações coletivas.
Passados 200 anos de histórica política brasileira e 20 anos da CF/88, a luta não é mais pela codificação de direitos, mas sim pela sua efetividade, por uma leitura madura que  otimize os recursos orçamentários existentes, dos direitos sociais, em geral e do direito à saúde, em  particular. O que torna o direito à saúde de maior complexidade para sua efetividade é a sua dependência com outras políticas públicas.
A efetividade do direito social à saúde é diretamente relacionada à educação e informação, ambos se situam na esfera preventiva. A população com maior grau de instrução se alimenta melhor e tem mais cuidados com sua saúde. O direito à informação utilizado de uma maneira preventiva propicia o exercício do direito à saúde e também a fiscalização a respeito da execução orçamentária.
É preciso repensar a questão da judicialização dos direitos sociais no Brasil, especialmente o direito à saúde.  Na maioria dos casos, a intervenção judicial não ocorre devido à omissão legislativa absoluta, em matéria de políticas públicas voltadas ao direito à saúde, mas em razão de uma necessária determinação judicial para o cumprimento de políticas já estabelecidas. O judiciário não está criando política pública, mas apenas determinando o seu cumprimento.
Caso a prestação de saúde não seja abrangida pelo SUS, é importante distinguir se a ausência de prestação decorre de uma omissão legislativa ou administrativa ou decisão de não fornecimento. Daí se extrai a necessidade de construção de critérios para resolução no caso concreto, com o custo de uma demanda individual e similares que possam ocorrer, no futuro. Repisando-se que o melhor foro para as discussões de inclusão de medicamento ou tratamento de saúde são as ações coletivas.
O STF, com a audiência nº 4,  teve um papel importante em termos de diálogo multidisciplinar com a sociedade, abrindo-se democraticamente à sociedade.  Deste debate poderão surgir caminhos importantes à concretização do direito fundamental à saúde.
A hermenêutica de matriz gadameriana-dworkiniana mostra também, que para se obter uma resposta correta, em termos de direito à saúde, não basta mencionar o direito à vida, ou o direito à saúde. É preciso uma interpretação de princípios. E os princípios, na teoria de Dworkin, não se apresentam como mandados de otimização, e sim como a história institucional do Direito.
Assim, e buscando fundamentos na hermenêutica de Gadamer, tem-se como correta, a interpretação que leve em conta a tradição jurídica como um todo, e não apenas a Constituição, através de um julgamento solipsista.
É preciso levar em consideração toda a produção normativa existente, bem como a jurisprudência consolidada, a doutrina, e até mesma a opinião pública. Sem esquecer importantes debates que transcendem fronteiras tradicionais do direito, como é o caso da Audiência Pública número 4 do STF, sobre a saúde.
 Por vezes, já que por via de ação individual, se concede individualmente um medicamento, sob o qual não há muitas vezes eficácia comprovada, o que, considerada a escassez dos recursos, representa à retirada desse medicamento de outro. Num discricionário sopesamento entre a igualdade no acesso à saúde, e um abstrato “princípio” fundamental de direito à vida, que muitas vezes nem se demonstra nas circunstâncias concretas,[1] muitos magistrados optam pelo segundo.
No caso do direito à saúde, em especial, costuma se vislumbrar uma afronta sistemática à já citada lei 8.080 de 1990. Tal lei estabelece como se dará a aplicação do direito fundamental à saúde, estabelecendo-se os medicamentos de maior relevância, e a atribuição da competência de cada ente federativo. Ora, tal lei se presume constitucional, e insere-se naquilo que se pode chamar de tradição. É produzida democraticamente, e a elaboração da lista dos medicamentos é acompanhada por uma série de instituições sociais. Portanto, possui uma história institucional que precisa ser levada em conta quando da sua interpretação/aplicação. Isso é uma questão de princípio, tal qual trata Dworkin.
É preciso levar em consideração toda a produção normativa existente, bem como a jurisprudência consolidada, a doutrina, e até mesma a opinião pública. Sem esquecer importantes debates que transcendem fronteiras tradicionais do direito, como é o caso da Audiência Pública número 4 do STF, sobre a saúde. Lembrando-se que para isso há de existir profunda fundamentação, no sentido de desvelar adequadamente os princípios constitucionais. “Ou isso, ou teremos que admitir que a) o Judiciário constrói leis; b) a elas se sobrepõe e c) as revoga”.[2]
Assim como o fundamento do controle é a Constituição, não pode ser ele quem à viole. Em vez de um sujeito solipsista que tem na interpretação um ato de vontade[3], é preciso que o magistrado, em tempos de Estado Democrático de Direito, esteja atento para a necessidade de legitimação das decisões judiciais. É atentando para o caso concreto e tudo que dele exsurge que é possível eliminar a discricionariedade. Pelo fortalecimento das instancias democráticas de controle da saúde é que se dá a efetividade das políticas públicas de saúde, e não pela mera judicialização da política. 
Nesse sentido, já é possível delimitar alguns argumentos, em especial alguns dos apresentados por Luis Roberto Barroso. Tem-se que o respeito às listas de medicamentos é importante, pois condiz com a legitimidade democrática, bem como o respeito aos entes federativos e sua divisão de competências. Isso, porém, não obsta a própria discussão constitucional da lista, o que se tem como foro mais adequado as ações coletivas, por seu efeito erga omnes. Assim, não existe um direito subjetivo de cariz liberal-individualista à saúde. O que existe é um direito à saúde, a ser implementado por políticas públicas.
Por óbvio que quando existente a política pública e não cumprida, cabe a intervenção judicial. E essa tem sido uma situação dramática corrente em nosso país. Porém há que se coibir os abusos. Os recursos são escassos em qualquer economia, e o benefício que se da a um, é o que se tira de outro. Justamente por isso é uma questão de escolha. E essa escolha tem de ter parâmetros, para que se possa auferir que é uma escolha correta.



[1] A banalização de tal expediente é melhor aprofundada no artigo com link ao final do texto.
[2] Ver STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso. Constituição, Hermenêutica e Teorias Discursivas Da possibilidade à necessidade de respostas corretas em Direito. 3.ed Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2009, p. 563
[3] Tal qual Kelsen explicita em seu cap. 8°, no qual trata da interpretação. KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. 7. Ed. São Paulo: Martins Fontes. 2006

 Esse texto tem por base o artigo publicado na revista Novos Estudos Jurídicos, da UNIVALI. Maiores detalhes, consultar: https://www6.univali.br/seer/index.php/nej/article/viewFile/2600/1802



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