O direito contemporâneo vem sofrendo diversas transformações em sua dogmática jurídica. Dentre as mais expressivas, encontramos no ordenamento pátrio, a publicação do código civil de 2002 e a Constituição Federal de 1988. Essas alterações não são meras substituições normativas, mas sim mudanças paradigmáticas em nosso direito. Nesse contexto há profundas alterações hermenêuticas. Dentre as mais expressivas cabe citar aquela que embasa este trabalho: A repersonalização do Direito Privado.
O efeito produzido pela promulgação da Constituição e o Código Civil alterou substancialmente o papel da Pessoa em nosso direito. A começar pela Carta Magna que
em seu art. 1º já traz a Dignidade da Pessoa Humana como fundamento do Estado brasileiro. Por sua vez o Código Civil não deu a esperada ênfase na Pessoa, mas não há dúvidas de que, por força da Constituição, há um lugar especial para ela.
Esse lugar é justamente o centro gravitacional do ordenamento jurídico.
É o ordenamento jurídico incorporando a máxima Kantiana de que a pessoa deve ser tida sempre como fim, jamais como um meio.
Porém essa alteração não será implementada da noite para o dia como se uma mera alteração legislativa fosse apta a resolver o problema. Há que se chegar no imaginário dos juristas. Esses é que precisam ter em mente essa máxima ao compreender/interpretar/aplicar o ordenamento jurídico.
Além disso, não é suficiente mencionar a centralidade que adquire a Pessoa Humana, mas sim considerá-la em sua situação existencial, sua historicidade e sua concretude, rejeitando qualquer construção teórica que a coloque em algum lugar abstrato.
Por mais que pareça singelo, o tema requer profundas reflexões. Ao nosso juízo parece prudente começar pela reflexão acerca da Pessoa para que possamos discutir sua dignidade e suas implicações para o Direito.
Partindo-se, por opção metodológica, do conceito que permeia o senso comum parece não haver maiores dúvidas de que Pessoa é o homem.
A próxima questão é “quando inicia uma pessoa e quando ela termina?”.
Nesse ponto o art. 2° do Código Civil é elucidativo ao dizer que a Personalidade Civil da pessoa começa com o nascimento com vida, salvaguardando os direitos to nascituro desde o nascimento. Porém o que verificaremos é que tal determinação não é tão simples. Com os avanços da Ciência surgem cada vez mais questões de implicações éticas e que remetem-nos a questionar a partir de que momento há uma pessoa. A leitura de tal artigo não gera interpretações pacificas.
Para alguns autores a teoria adotada foi a Natalista, já que só considera pessoa quem nasce com vida, apesar das proteções dadas ao nascituro. Já outros entendem ter o código adotado a teoria Conceptualista, que entende haver uma pessoa desde o momento em que temos um embrião. As razões são as mais diversas, desde fundamentações de cunho religioso até fundamentações puramente jurídicas, passando por aquelas de caráter filosófico, moral, pragmático, dentre outros.
Uma leitura que embasou boa parte da discussão até os dias de hoje é a de que pessoa é um ser dotado de razão e consciência, bem como uma moralidade. Tal leitura encontra embasamento nas idéias iluministas que culminaram com a proclamação da Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão.[1]
A partir dessas referencias estabeleceu-se o debate entre os neokantianos e a corrente vitalista. Para os neokantianos, a vida se iniciaria a partir do momento em que seria possível exercerem-se as faculdades morais, sendo que pra a corrente vitalista inicia-se pela concepção. Desde já fica evidente a dificuldade em precisar o que é uma pessoa, seus limites, até mesmo de cunho temporal.
Em função disso é preciso encontrar uma justificativa de caráter racional, já que não há consenso sobre o que é a pessoa humana. O debate ficará “a deus dará” se permanecer em um nível de discussão que não passe da biologia, pois como vimos, a ciência contemporânea encontra dificuldades em precisar os momentos cruciais para o surgimento da pessoa e as suas implicações, razão pela qual faz-se necessário uma investigação sob uma ótica moral.
Pelo mesmo caminho segue o jurista e, orientador deste trabalho, José Carlos Moreira da Silva filho ao dizer que “percebe-se que a palavra pessoa aponta para uma verdadeira construção cultural e que, tal qual ela chegou aos dias presentes, indica muito mais do que apenas um ser biológico”. [2]
Por essas razões expostas é que só um debate transdisciplinar consegue fundamentos razoáveis. Do já mencionado debate entre os neokantianos e vitalistas surgiu uma valorização da espécie humana, com um certo apego à genética. Por mais que falar em um genoma remeta-nos à ciência genética dos tempos de hoje, é com a Igreja Católica que surge as idéias dessa corrente. Aliás, não só essa idéia vêm dessa tradição religiosa. A idéia de que só o homem, e, todo o homem é pessoa também surge com a Igreja.
Para doutrina católica os limites da Pessoa estão associados ao dom divino da razão, sendo que é essa característica que nos diferencia dos animais. Os limites temporais passam a serem estabelecidos pela alma. Passa-se a ser pessoa a partir do momento em que a alma é incorporada ao corpo, sendo que deixamos de ser pessoas quando a alma deixa o corpo, ou seja, com a morte.
Porém isso não pôs fim a discussão, que se demonstrou importante em diversos momentos históricos. Para citar um deles, à época da colonização das Américas questionou-se sobre a natureza dos indígenas, se seriam ou não pessoas. Muitos defenderam que eles não seriam pessoas e, portanto, passíveis de serem escravizados.
Tal diferenciação não era novidade, só com Tomás de Aquino é que se estabelece que todo homem, e só o homem é pessoa. Na Idade Média era normal atribuir personalidade a objetos e animais.
A fundamentação para esse entendimento era que todos eram igualmente criaturas de Deus, tanto os homens quanto os animais, e, porventura, objetos. Porém mais paradigmático que o conceito de pessoa humana adotado pela idade média é o conceito adotado na modernidade. Como sabemos foram profundas as transformações advindas com a Modernidade e o Iluminismo. Ocorreu uma pretensa separação de Deus e dos valores cristãos a fim de colocar o homem no centro do pensamento, passando a adotar-se uma filosofia laica. Dentre esses pensadores, certamente que um dos mais influentes é René Descartes. O autor representa um marco na história do pensamento, e exerceu grande influencia sobre diversos autores que surgiram após ele.
Em Descartes se verifica um processo de interiorização, semelhante a Santo Agostinho e até mesmo Platão, para o qual as fontes morais da pessoa estavam localizadas internamente. O ponto que diferencia Descartes é que, apesar da interiorização advinda de um racionalismo e de um individualismo, o filósofo diz que conhecer é ter uma representação correta da realidade, que é exterior ao individuo.
O que se vê é uma evidente supremacia da razão. Uma razão instrumentalizadora da realidade.
Ocorre que essa é uma razão descolada, como trata Charles Taylor. Na idéia de que conhecer é apreender corretamente a realidade, está implícita a idéia de que a razão não está inserida na realidade circundante. É como se estivesse localizada em algum lugar abstrato, privilégio do observador. O corpo passa a ser meramente o meio que torna possível a razão conceber a realidade. É uma razão descolada de sua realidade e até mesmo de seu corpo.
Esse é basicamente o modelo que norteou o conceito de Pessoa na Modernidade, um ser racional, dotado de uma razão descolada e instrumentalizadora.
O próximo passo essencial para se discutir uma “repersonalização” do Direito Privado é discutir a Dignidade da Pessoa Humana. . Para tal foi escolhido Imannuel Kant, tido como principal representante do Iluminismo. Poucos filósofos exerceram tanta influencia sobre o direito como Kant. Da mesma forma, poucos filósofos trataram com tamanho afinco o tema da Dignidade da Pessoa Humana.
Kant entende que o ser humano chega à maioridade quando consegue fazer uso de seu próprio entendimento. Em contraposição a esse conceito está o conceito de Menoridade, que é quando o ser humano não consegue fazer uso de se próprio entendimento sem se pautar por outro individuo. E é graças ao Iluminismo que o ser humano pode fazer uso de seu próprio entendimento, pois não mais estava submetido a uma ordem cósmica que lhe era superior, ou até mesmo a uma ordem divina das coisas, como ocorria no medievo. Como já referido, a liberdade é essencial para atingir-se a maioridade, razão pela qual o conceito de autonomia toma grande importância na obra do filósofo prussiano. A boa moralidade é aquela que é fundada no dever, mas o dever que cada individuo impõe a si mesmo. O ser racional obedece somente à lei que ele impõe a ele mesmo, pois de outra maneira sua razão não seria considerada um fim em si mesma, e, portanto não teria dignidade.
Kant não impõe valores a serem seguidos, pois dessa forma não teria os outros seres humanos como fim em si mesmos, mas estabelece os passos que uma ética deve seguir.
Para o filósofo, o Imperativo Categórico é único, e descrito da seguinte forma: “Age só segundo a máxima tal que possas ao mesmo tempo querer que ela se torne lei universal”.[3]
Dessa formulação básica Kant formula mais três proposições do imperativo categórico, concluindo pela importância da autonomia da vontade. “Enquanto legisladora universal, a vontade é autonomia diante da heteronomia da lei, pois torna-se autora”.[4] E aqui surge o elo de ligação entre moralidade e dignidade, qual seja, conceber os sujeitos racionais como um conjunto de fins em si mesmos, e não como meio para outros fins. Isso nada mais é do que a formulação kantiana sobre a Dignidade da Pessoa Humana. Para o filósofo prussiano, é digno tudo aquilo que esta acima de qualquer preço, não podendo ser substituído por nada. Disso conclui que só o ser humano é dotado de dignidade, fato que impõe que se considere o ser humano sempre como um fim em si mesmo, e nunca como um meio. Portanto, a ética kantiana nada mais é do que um modelo a ser seguido ao se verificar se uma ação é correta ou não, universalizando tal conduta, e descobrindo-se a resposta. Trata-se de ter a humanidade sempre como fim. Portanto uma ética individualista, que valoriza a vontade dos indivíduos, colocando-a acima de tudo, desde que uma vontade universalizável.
E apesar de tratar-se de um filósofo, faz-se desnecessário relembrar o período histórico em que para nosso direito privado mais interessava a autonomia privada do que a lei estatal. Forte foi a influencia de Kant sobre a ideologia liberal. O pressuposto de que havia dois sujeitos racionais estabelecendo um contrato, por exemplo, fazia com que, para que respeitada sua dignidade, a vontade acordada entre as partes se sobrepusesse a qualquer outra lei que não a formulada por eles.
Entretanto, em determinado momento da história do Direito Privado, se perdeu o elo que ligava-nos à pessoa, e a mantinha em caráter central.
Não seria verdade se afirmássemos que é com o liberalismo que ocorreu tal fato.
Isso porque a ideologia liberal e a classe social que a sustentava, inspiraram sistemas de codificações totalmente diversos. Além do sistema Commom Law, que se desenvolveu em países anglo-saxões e perdurou em tempos de liberalismo, houve as codificações ocidentais de inspiração jusnaturalista-racionalista como a do pós-revolução francesa, e a pandectística alemã.
O sistema adotado pelos franceses, no código de Napoleão, por exemplo, tem um caráter claramente antropocêntrico. Um código que partia do homem e seus direitos, em direção à como se daria a realização dos direitos. Código que trazia em seu primeiro livro já “as pessoas” tratando da propriedade somente nos livros 2 e 3. Era um código de inegável inspiração jusnaturalista-racionalista. Entretanto, ao contrário do que se propõe expor ao final deste trabalho, esse código não considera a pessoa concretamente situada, inserida em uma pré-compreensão que lhe é anterior.
A ideologia presente nessa codificação não pretendeu ignorar a pessoa, muito pelo contrário, procurou exaltar da maneira que pode. Ocorre que em um momento histórico sob forte influencia do liberalismo econômico ser pessoa é ser proprietário. Não havia preocupação para além da esfera econômica dos indivíduos. Nas palavras de Teresa Negreiros “O Código Civil é a autobiografia do indivíduo burguês”.[5]
A contrario sensu da postura humanizante da tradição francesa surgiu a pandectística alemã do Séc. XIX, com seus principais representantes sendo Savigny Puchta e Windscheid. No âmago dessa escola, um espírito científico que pretendia afastar qualquer ideologia. Por trás dela, a filosofia de Kant dava grande suporte.
O processo de análise do Direito passou a se assemelhar às ciências da dedução, como no caso de Puchta e a “Genealogia dos conceitos” ou se assemelhava às ciências da indução, como no caso de Ihering com seu método científico-natural.
Os pandectístas partiram de um sistema historicamente concluído para estabelecer seu plano de trabalho. Observando o direito comum romano passaram a extrair princípios fixos e conceitos. A partir desses conceitos desenvolveram-se as codificações, organizadas de tal forma que um conceito se submetia ao outro. O sistema das pandectas trazia um estilo teórico retraído, estilo manualístico e desprovido de paixão, “como se o Direito não fosse de homens e para homens”.[6] Cabe ressaltar que a escola histórica mais era uma escola “historicística”, já que tratava de um sistema historicamente concluído, mas ignorava o fato de que tal sistema estava inserido em um contexto histórico totalmente diverso.
Tal fato se deve, em parte, pelo amor pelo passado, típico do historicismo. Não crendo em um futuro melhor, os historicistas abraçam-se ao passado. Também desenvolvem igual amor pela tradição, pelas instituições e os costumes existentes na sociedade e solidificados ao longo do tempo.
No seio dessa teoria começa a desaparecer o conceito de pessoa para dar lugar ao conceito de “relação jurídica”. Parte-se do pressuposto que o Direito nasce da vida em relação. Em relação ao jus-naturalismo individualista que antecede a escola histórica, tal conceito representa um avanço, pois reconhece a alteridade intrínseca ao Direito. Entretanto a idéia não prosperou.
E não prosperou justamente pelo sistema “científico”, que carregava-nos a um mundo de abstração.
É sem dúvida com a escola histórica alemã, ou pandectísta, que surge o positivismo jurídico. Ao criticar duramente o jus-naturalismo criou-se as bases, como já demonstradas, para o jus-positivismo.
Em movimento contrário à abstração que o positivismo e a pandectística nos conduziu é que surgiu o discurso da Repersonalização do Direito Privado.
Ele surge com as mudanças no constitucionalismo e na própria estrutura do Estado. Das transformações que implementaram o Estado Democrático de Direito, e o constitucionalismo que lhe sustenta é que surge a idéia de que a Pessoa adquire a centralidade do ordenamento jurídico, permeando os demais ramos do direito, como o Direito Privado.
E isto ocorre porque perde o sentido a tradicional separação entre Direito Publico e privado. Tal separação é fruto da separação entre Sociedade e Estado, que por sua vez também é fruto de uma separação entre Publico e Privado. Como bem analisa Hannah Arendt[7], ao observar a sociedade grega, o espaço privado era aquele concernente à família, enquanto que o publico referia-se à polis. No tocante à família, não era por nada que ela se agrupava de tal maneira. Isso ocorria por necessidade, sendo, portanto o espaço privado um espaço referente à necessidade de sobrevivência. O publico, portanto, era o espaço “social”, o espaço da política, da interação social, do discurso. Era o espaço da realização pessoal, restando ao espaço privado ser um fardo na vida do cidadão. Contudo, o espaço privado gozava do status de lugar sagrado, já que ele que possibilitava o espaço publico.
E assim também era respeitada a propriedade privada, já que se um homem não fosse dono de sua casa ele não poderia participar dos negócios do mundo. Desse modo surgia a política, não para proteger a propriedade, ou menos ainda a sociedade, e sim para proteger a liberdade da sociedade, própria do espaço publico, autorizando-se a limitação da autoridade política.
Infelizmente tais conceitos se perderam na modernidade. O que passa a existir é o “social”. A idéia de propriedade passou a ser substituída pela de riqueza, e o Estado veio a garantir, não a propriedade privada como os gregos concebiam, mas sim a acumulação de capital. Aquele espaço sagrado da vida privada perdia seu lugar para dar espaço às necessidades mercadológicas. A esfera privada ascende tomando conta da sociedade e até mesmo invadindo os espaços públicos. Freqüentemente se observa um interesse privatístico por parte da população em assuntos de ordem publica. Tal fato põe em questão até mesmo a tradicional distinção entre Direito Publico e Privado, e vem na contramão de uma pretensa publicização do Direito Privado.
Outro dogma que cai por terra quando se perdem esses pressupostos é a rígida separação entre Estado e Sociedade. Tal separação só tem sentido quando há uma clara separação entre os espaços públicos e privados, sendo o Estado integrante da esfera publica e a Sociedade o lócus da esfera privada. Essa distinção que fazia com que o Estado não interviesse nas relações privadas, para os gregos, por exemplo. Em nossa recente história, essa distinção amparava a tese de que os Direitos Fundamentais seriam exigidos somente do Estado. Segundo esta tese, só o Estado poderia ser agente passivo, não estando permitido aos particulares.
Todavia, transformações ocorreram, inclusive no Estado. E o Estado consagrado na atual ordem constitucional deixa claro que tal posição não é coerente com o projeto democrático nele presente. Nesse escopo, acaba por alterar-se o entendimento acerca da Constituição. A Carta Maior deixa de ser encarada como uma lei, apesar de estruturada de tal maneira, e, juridicamente estando em hierarquia superior às demais leis, para ser compreendida como um pacto político, o pacto político que da origem e sentido ao Estado. Eliminando-se a ficção que separa o Estado da Sociedade, chega-se à conclusão de que a Constituição é necessária à sociedade, pois pauta os valores que serão observados nas relações sociais.
Para usar a expressão gadameriana, a Constituição tem de estar sempre no horizonte hermenêutico do intérprete.
Nesse escopo surge o que se tem denominado Constitucionalização do Direito Privado, ou até mesmo publicização do direito privado, bem como Repersonalização Do Direito Privado. E diz-se repersonalização justamente em função do postulado da Dignidade da Pessoa Humana, que impõe a Pessoa como centro do ordenamento jurídico. Ela é o centro de toda ordem constitucional, razão da existência do Estado, e atendendo à tese da eficácia horizontal dos direitos fundamentais, vem a atingir as relações sociais também.
Mais uma vez fica evidente o necessário caráter transdisciplinar do Direito, que para sua própria compreensão e ideal aplicação precisa de amparo nos demais ramos do saber, como a filosofia, as ciências econômicas, a sociologia, a antropologia, etc.. Nesse aspecto acertou o constituinte ao não encerrar um conceito, e adotar o modelo de cláusulas abertas, como também ocorre com o recente Código Civil. Esta é a nova postura hermenêutica que exige a atual legislação.
Neste trabalho já foi possível explicitar a noção kantiana de Dignidade da Pessoa Humana, que permanece como base para o pensar atual. Parece unânime que não se quer retornar a algo anterior a esta noção. A humanidade é sempre o fim ultimo do Estado.
Entretanto, compreender o significado prático dessa afirmação nem sempre é uma tarefa fácil. Não faltam exemplos da invocação abusiva e meramente retórica do Principio da Dignidade da Pessoa Humana.
Para solucionar tal impasse, propõe-se uma reflexão filosófica, e uma construção teórica que valorize a pessoa em sua existencialidade, sua concretude, sua historicidade, e principalmente, na dimensão pré-compreensiva na qual se encontra. Para tanto, será utilizado o pensamento do filósofo Martin Heidegger, o qual parece tratar a pessoa de maneira mais adequada, como se demonstrará.
Mostra-se necessário também propor uma noção que não tenha caia no individualismo iluminista.
O individualismo insere-se na Modernidade, sob o contexto iluminista, como a maior conquista da humanidade. Agora o homem se via livre das amarras que tinha quando incluído em um modo de produção feudalista. As pessoas não se faziam mais presas a Deus, à igreja, ou a qualquer outra coisa e passavam a “fazer uso do seu próprio entendimento”, na expressão de Kant, símbolo do iluminismo.
Entretanto, se por um lado isso foi uma conquista, por outro trouxe diversos problemas para a sociedade que vivemos.
A liberdade moderna foi uma conquista que se deu pela quebrado da velha moral medieval, na qual as pessoas se sentiam presas a algo maior que elas, uma realidade transcendental que às dava sentido, que vinha desde a antiguidade, quando, para os gregos, por exemplo, se falava em cosmos, na idade média se atribuiu à uma ordem divina, à Deus. Isso acabou por levar a humanidade ao que Charles Taylor denominou de “Desencantamento do Mundo”. E com esse desencantamento migramos a um individualismo que de dádiva veio a ser o que o filósofo canadense denominou por um dos males da modernidade. Este individualismo vazio, que tende a distanciar as pessoas e tornar tudo artificial. As pessoas não têm mais senso de algo maior, de algum ideal pelo qual valeria a pena morrer. Não por acaso que Bauman questiona se “A libertação é uma benção ou uma maldição?”.[8] A lógica do custo benefício, típica da ordem econômica e própria da razão instrumental, passa a ocupar o centro do pensamento humano, transgredindo as barreiras da ordem econômica, atingindo o cotidiano. Agora todas ações humanas passam pelo crivo da análise de custo-benefício. Tudo passa a ser um instrumento da razão humana. A tecnologia passa a ter uma espécie de aura, sendo a grande vedete, pela qual passam todas as soluções. Chega até a áreas do conhecimento como a medicina, e ao invés do médico tratar uma pessoa, que possui uma história de vida, e uma vivencia própria, trata-a como um problema técnico, vendo apenas mãos, braços, pernas, órgãos. A própria denominação de “paciente” evidencia isso. A tecnicidade impôs essa linguagem a outros ramos também, como ,por exemplo, policiais que vêm “elementos”, políticos que vêm “cidadãos”, juizes que vêm “demandantes” e “demandados”, dentre outros exemplos.
Instaura-se um paradigma cientificista, que ignora a subjetividade das pessoas, tornando-as um objeto passível de observação científica.
Ao longo do século XX tais conceitos passaram a ser superados, em função de postulados como a função social da propriedade e do contrato, dentre outros.
Nesse contexto, passa a ficar em evidencia a idéia de solidariedade social, que supõe a relevância da condição social da pessoa, ao contrário da concepção abstrata e formal do sujeito de direito, um típico indivíduo. Resgata-se a idéia da comunidade constituída não só de direitos, mas de deveres também. Acaba por se remodelar a dogmática jurídica contratual, por exemplo, a fim de atender a concepção trazida pela constituição acerca da pessoa humana.
Em suma: transita-se da idéia de um individuo abstrato a uma noção concreta de pessoa.
E neste passo é que necessitamos de um suporte filosófico, para melhor compreender a pessoa. Para tal, foi escolhido o filósofo alemão Martin Heidegger.
Dentre os vários motivos que pautaram esta escolha, mostra-se primeiro o fato de que Heidegger representa um rompimento com o racionalismo.
As codificações modernas, liberais, foram fortemente inspiradas pelo racionalismo kantiano. O pressuposto são indivíduos racionais deliberando racionalmente suas decisões. Heidegger e outros pensadores, com Marx e Freud vão demonstrar o equivoco desse pressuposto. Marx ao mostrar que a razão é submetida às relações materiais, Freud ao submeter ao inconsciente e Heidegger ao mostrar que toda compreensão é fruto de uma pré-compreensão que precede o sujeito pensante. O filósofo alemão mostra como nossa compreensão, e nossa interpretação, se fundam em uma pré-compreensão, que se forma ao longo dos anos através da vivencia, da historicidade de cada um. No começo adquirimos um conhecimento prático das coisas, sem perguntar pelo seu sentido. Este nível Heidegger denominou de nível ontico, contrapondo-se ao ontológico. No nível ontológico é que se questiona pelo sentido do ser, não se apegando somente ao ente. Ao individuo pensante e questionador, que busca pelo sentido do ser, Heidegger denominou dasein, ou em vernáculo, ser-aí.
A fenomenologia Heideggeriana parte da faticidade, ignora as categorias abstratas, traz a realidade de volta à filosofia. A conseqüência para o Direito é a mesma, sendo de grande valia na era dos princípios, que também tem por escopo trazer a realidade à tona, impondo-se uma análise casuística, que verifique e considere as pessoas existencialmente.
Nesse ponto o filósofo relaciona que o homem é desde sempre um ser-no-mundo. Isso porque desde sempre estamos inseridos no mundo, em nossa realidade social, em nosso contexto cultural e geográfico, enfim, todos fatores que influenciam na compreensão.
Tal fato pode parecer uma obviedade, mas se lembrados os níveis de abstração que a metafísica moderna nos remetia entenderemos o sentido de tal afirmação. Heidegger entende que a busca pelo sentido do ser ficou esquecida na metafísica desde Platão, aonde se inaugurou os dualismos que remetiam o sentido do ser a outra realidade transcendental, arrancando-os de sua realidade fática, e do sujeito que os compreende, transportando para o mundo das idéias, para a ordem divina, ou para uma simples separação entre essência e aparência. Tudo dentro de um esquema de observação de sujeito e objeto, em que um sujeito pode observar tranqüilamente, através de sua razão instrumentalizadora, a realidade que o cerca, com perfeição, apreendendo o sentido que aí está. Heidegger desloca o foco dessa discussão para o local aonde se dá a compreensão do sentido do ser, para o único que compreende este sentido: o dasein.
Ora, se só o homem compreende e questiona o sentido das coisas, nele é que deve se dar a sua análise. Partindo do pressuposto que Nietzsche estabeleceu de que “não existem fatos, só interpretações” Heidegger conclui que as coisas não têm um sentido em si, a ser obtido pelo interprete através de um método, por exemplo. A verdade não está posta, o sentido precisa ser construído, portanto a interpretação é sempre um ato produtivo.
Assim é construída a obra Ser e Tempo de Heidegger, entendendo-se que o sentido do ser se dá no tempo, ou seja, é histórico, situado no tempo, na realidade do dasein, em seu contexto. Não é algo atemporal, como se pretendeu outrora, um sentido único, que indepentendemente da situação expressaria-se adequado mediante a correta interpretação.
Traz ao Direito as reflexões sobre a compreensão/interpretação/aplicação da lei, que se dá em simultaneidade, bem como elimina o já defasado debate entre a vontade do legislador e a vontade da lei. Estabelece também que, dentro de um direito privado repersonalizado, os sujeitos que aí estão, sejam eles contratantes, consumidores, ou qualquer outra categoria, não devem ser considerado apenas como uma categoria abstrata, mas sim existencialmente, o que impõe uma análise casuística do direito, amparada pelos princípios do Direito, e pelo que o professor José Carlos Moreira da Silva Filho denominou de pré-compreensão jurídica complexa, que vincula os juristas à tradição, eliminando-se a discricionariedade do Direito.
Pretende-se portanto, explicitar todos estes conceitos, trazendo-os para a reflexão acerca da pessoa e do direito privado, contribuindo para a Repersonalização do Direito Privado.
[1] O documento citado foi aprovado em 26 de agosto de 1789. Suas inspirações políticas foram a Revolução Americana (1776) e a Assembléia Nacional Constituinte francesa. (1789) Inspirou diversas constituições, da França, e de outros países, bem como tratados internacionais. O mais expressivo é a Declaração Universal dos Direitos do Homem, aprovado pela ONU em 1948. A carta dos direitos humanos de 48 mostra a força que adquiriram essas idéias ao longo de nossa história e guarda grande importância com o tema que aqui se esta a desenvolver. Em seu primeiro artigo diz “todos os seres humanos nascem e permanecem livres e iguais em dignidade e em direitos. Eles são dotados de razão e consciência e devem agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade”.
[2] SILVA FILHO, José Carlos Moreira da. Pessoa humana e boa fé objetiva nas relações contratuais: a alteridade que emerge da ipseidade. In: Constituição, sistemas sociais e hermenêutica: programa de pós graduação em direito da UNISINOS: mestrado e doutorado. Porto Alegre: Livraria do Advogado; São Leopoldo: UNISINOS, 2006
[3] KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes e outros escritos. São Paulo: Martin Claret, 2003. P. 51
[4] JUNGUES, José Roque. O respeito à dignidade humana como fundamento de todo humanismo. In Teologia e humanismo social cristão: traçando rotas. Nº 1. Unisinos: São Leopoldo. P. 151
[5] NEGREIROS, Teresa. Teoria do contrato- novos paradigmas. Rio de Janeiro: Renovar. 2002 P. 14
[6] CARVALHO, Orlando de. A teoria geral da relação jurídica – seu sentido e limites. 2.ed. Coimbra: Centelha, 1981 P. 43
[7] ARENDT, Annah. A condição humana. 10.ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001
[8] BAUMAN, Zygmunt. Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004. p. 26
4 comentários:
Concordo com a parte que fala da hermenêutica, kant e tal... tb concordo com o lance da igreja católica... hahahaha...
"uma breve introdução"
tu só pode estar brincando...
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