Naquele dia reuniam se na sacristia cinco bispos e um padre. Lutava o padre por uma renovação na Igreja. Há anos este jovem sacerdote havia se empenhado nessa luta. Durante anos de tradição a bíblia não mais representava os anseios de Jesus Cristo, nosso senhor, nem mesmo a vontade de Deus. Os dogmas acabaram por objetificar uma visão das coisas contrária à verdadeira vontade de Deus. Ao mesmo tempo o padre queria ver mais seriedade de seus colegas. Não podia suportar os sermões em que o padre diz qualquer coisa sobre qualquer coisa. A bíblia havia sido esquecida. Os bispos discordaram profundamente. Apenas o mais velho dos bispos mantinha-se ao lado do jovem sacerdote.
Os outros invocaram a bíblia e mostraram que não existia qualquer indicio de que deveria se manter essa visão de mundo. Jesus falava de amor. Queria mais fraternidade entre as pessoas. Por óbvio que nesse contexto uma interpretação da Bíblia que excluísse as pessoas não poderia ser válida. Mas eles se apegaram ao texto da Bíblia. Era inadmissível que os padres saíssem por aí a dizer o que significava a Bíblia. Os padres não tinham esse poder.
- Quanto mais eu conheço os padres, mais eu me apego aos ensinamentos do nosso senhor Jesus Cristo - disse o Bispo mais velho.
A desconfiança sobre os padres era grande. Para ele era uma questão de dar poder ou aos padres, ou à Cristo. Ele preferia a Cristo. Se não estivessem contentes com a bíblia que chamassem o messias de volta para dizer o que eles queriam. Jamais colocar palavras na boca do Salvador. Os bispos sentavam todos juntos à mesa, enfileirados. Em cima da mesa um copo de vinho para cada um. O primeiro a discutir a questão foi o da direita. Reservaram-lhe este espaço por ser visitante, ele vinha de outra diocese.
O do meio apenas coordenou os trabalhos, abstendo-se de se manifestar. O bispo vinha de fora, com muitas visões inovadoras. Falava de uma nova igreja. Sua leitura da Bíblia era diferenciada. Reconhecia muitas partes inadequadas na Bíblia, principalmente no antigo testamento. Porém também via muita coisa boa no livro sagrado. Apegava-se particularmente nas palavras do messias. Aquele messias que falava de amor. Não aquele Deus temeroso do antigo testamento. Se Cristo disse que devíamos amar ao próximo, tendo incondicional respeito no outro, por sermos todos filhos de Deus, então não havia porque ter discriminação entre os irmãos. O jovem padre estava equivocado. Seu discurso era muito belo, mas havia um ponto de contradição.
Entretanto, o jovem sacerdote mantinha-se firme no seu discurso, defendia-se apenas lendo a Bíblia, e dizendo que não estava inventando nada. Os outros padres é que o faziam.
O segundo Bispo a falar também era de fora. Os cabelos grisalhos evidenciavam experiência. A fala calma mostrava serenidade. Apesar da aparência conservadora também concordara com o outro Bispo. Eles estavam dispostos a fazerem mudanças. O terceiro Bispo a falar era o mais jovem de todos. Representava a casa, era da diocese onde se realizava a reunião. Como todo jovem tinha espírito revolucionário. Era de se esperar que seguisse o caminho dos outros bispos. E fez mais! Fez o pobre padre escravo de seus próprios argumentos. Não era possível que o padre falasse em fraternidade e aceitasse tamanha discriminação. Mostrou escancaradamente a contradição que se envolvera o sacerdote.
Longos discursos dos três Bispos, sempre com muita coerência. Resolveu então se manifestar o antigo Bispo. Era o mais velho, o mais experiente. Outrora havia sido um revolucionário também. Era ainda muito respeitado na Igreja, ao mesmo tempo em que era odiado por muitos. Como o terceiro Bispo, também representava a diocese. Porém pensava diferente.
- Leiam a Bíblia, caros senhores. Estão a colocar palavras na boca do messias. Acham que tem esse direito? O homem de Nazaré veio para nos salvar, devemos honrar sua mensagem. Devemos respeitá-la, devemos temê-la. Não estamos autorizados a desdizer o que ele disse. A Bíblia esta aí para qualquer um ler.
Ele leu em voz alta o versículo em questão:
- Há alguma dúvida? As santas palavras não são suficientemente claras que os senhores acham que precisam interpretá-las?
E prosseguiu:
- Deus pensou uma família de um homem e uma mulher. Está escrito na bíblia. Não podemos mudar. Esta é a mais pura vontade do nosso senhor Jesus Cristo. Não estou aqui discutindo se é certo ou se é errado. Mas o que é errado é um padre querer dizer o que está escrito na Bíblia. Não pode! Os padres falam em nome de Deus, mas é a Bíblia a palavra de Deus. É preciso mais respeito pelas escrituras sagradas.
Seu discurso era coerente. Mas como aceitar que o mesmo padre que defendeu uma família feita de amor, de afeto, inserida numa comunidade solidária, fosse excomungar aqueles que optaram por uma vida diferente? Era o caso dos casamentos homossexuais. Alguns padres queriam celebrar o casamento. A igreja não permitia. O fundamento só poderia ser as sagradas escrituras. E foi acerca dela que se deu o debate. Entretanto alguém haveria de interpretar elas. Alguns queriam interpretá-la de maneira completa, compreendendo a mensagem de amor, tolerância e fraternidade que ela trazia. Mas este mesmo Deus também pregava medo, temor. Era um Deus que castigava. E castigara aqueles que não obedeciam a sua vontade. Ao constituir a família Deus a fez a partir de Adão e Eva. Um homem e uma mulher. E é assim que deveria ser. Nada deveria mudar.
Um comentário:
Pecador Leonardo,
Sua excomungação está próxima, sendo você batizado ou não, da mesma forma que o desconhecimento da lei não protege ato criminoso. Isso porque o texto apresentou claras referências ao mundo das sanções, isto é, o mundo do Direito.
Ainda que coubessem algumas ressalvas referentes a Bíblia Fundamental - que é única - enquanto constituições são quase uma dúzia, os padres e bispos foram bem caracterizados. Restou sutilmente concretizada, enfim, a discussão de interpretação e valores incluída em ambos os mundos.
Há de se notar que Igreja e Estado andaram de mãos dadas um par de anos durante a história, sendo que em muitos lugares ainda permanece indistinta. Talvez encontremos aí a gênese de tantas semelhanças, e por último me recordei que muitos de nossos espantos surgem de nossa curta memória.
Valeu, grande abraço
PS: Duas Ave-Marias e uns dois Pai-nossos, acho que resolve.
Postar um comentário