terça-feira, agosto 30, 2011

Democracia Representativa ou Delegativa?


No começo da década de 90, o cientista político Guillermo O’Donnell escreveu um texto já clássico, no qual cunhou a expressão “democracia delegativa”, para falar sobre um fenômeno bem comum na América Latina. Para ele, a passagem de um governo democraticamente eleito para um governo democrático é uma transição ainda mais longa e complexa do que a do regime autoritário para um regime democrático. Toda via, nada garante que essa segunda transição ocorra. Sempre há a possibilidade de se regredir ao regime autoritário, ou se afundar em uma situação frágil e incerta. Para que a segunda transição de certo, é preciso uma série de instituições democráticas que se tornem
importantes fluxos do poder político. Isso depende da atuação política dos próprios governantes  que, através de políticas públicas, precisam criar o reconhecimento de que existe um interesse comum superior na atividade política. 

De acordo com STRECK e MORAIS,
As democracias delegativas se fundamentam em uma premissa básica: quem ganha a eleição presidencial é autorizado a governar o país como lhe parecer conveniente, e, na medida em que as relações de poder existentes permitam,[1] até o final de seu mandato. O presidente é, assim, a encarnação, o principal fiador do “interesse maior da nação”, que cabe a ele definir. O que ele faz no governo não precisa guardar nenhuma semelhança com o que ele disse ou prometeu durante a campanha eleitoral – afinal, ele foi autorizado a governar como achar conveniente. E, como essa “figura paternal” precisa cuidar do conjunto da nação, é quase óbvio que sua sustentação não pode advir de um partido. [...] Tipicamente, os candidatos presidenciais vitoriosos nas democracias delegativas se apresentam como estando acima de todas as partes, isto é, os partidos políticos e dos interesses organizados. Como poderia ser de outra forma para alguém que afirma encarar o conjunto da nação?[2]

Fica evidente que a herança patrimonialista-estamental ainda não foi expurgada de nossa cultura. Nesse contexto de democracia delegativa, ainda se pode citar o como as instituições como o Congresso e o Judiciário são vistas como incômodos. Prestar contas parece um entrave à função que o presidente teve delegada a ele. O sistema de dois turnos nas eleições frequentemente é utilizado para “forçar” uma maioria absoluta. As mais variadas e descompromissadas alianças são feitas no segundo turno, mas no final permite ao presidente governar em nome da ampla maioria que o elegeu. O voto é dado sempre para a pessoa, independente de partido ou coligação. A identificação pessoal sempre permanece. No nosso sistema proporcional, mesmo o voto indo para a sigla, no momento de votar é na pessoa que se vota, é a foto dela que aparece na urna.

Os governantes das democracias delegativas se apresentam como verdadeiros messias, salvadores da pátria, e não governantes. O fenômeno do “decretismo” é constante. [3]Assim, na contrapartida, o Congresso se sente “irresponsável”.[4] Se, do ponto de vista da população, o mandato é um cheque em branco, quando não o é, a classe política se sente da mesma forma. Nos últimos tempos, decisões polêmicas fizeram a população protestar: Aumentos exorbitantes dos salários de deputados federais, estaduais, e até vereadores, bem como aumento de números de vereadores pelas cidades a fora de todo o Brasil. No entanto, na maioria dos casos os deputados e vereadores não recuaram. Alguns até se manifestaram assumindo o conhecimento  de que o povo estava contrário à medida, porém não deram bola e se utilizaram de outros argumentos. Ou seja, tanto no povo, como na cabeça dos governantes, há a ideia de que eles não representam o poder, mas que o poder foi delegado à eles, para que eles possam deliberar da forma como acharem conveniente. Como se o voto fosse um cheque em branco para que os políticos defendessem apenas sua vontade e seu interesse.


[1] Vale ressaltar, na medida em que o estamento permite, para usar a linguagem weberiana da tradição de Faoro.
[2] STRECK, Lenio Luiz. MORAIS, José Luis Bolzan de. Ciência Política e Teoria do Estado. Op cit. p. 118.
[3] Tal situação toma contornos específicos no Brasil e assume foros de dramaticidade. Celso Antonio Bandeira de Mello relata a situação no mandato do presidente Fernando Henrique Cardoso, realidade que não se alterou muito em tempos de Luis Inácio Lula da Silva. De acordo com o autor,  “Registre-se que o último Chefe do Poder executivo, o segundo Fernando, do início de seu primeiro mandato até o mês de agosto de 1999, expediu 3.239 medidas provisórias (inconstitucionalmente, é claro), o que corresponde a uma média de quase 2,8 medidas provisórias por dia útil de governo (isto é, excluídos feriados, sábados e domingos). Inversamente, no período foram editadas pelo Congresso apenas 854 leis (entre ordinárias e complementares). Vê-se, pois, que o Parlamento foi responsável tão-só por pouco mais de uma quarta parte das “leis”, pois quase ¾ restantes são obra exclusiva do Executivo. De resto, dentre as 3.239 medidas provisórias referidas,, apenas 89 delas – ou seja, 2,75% - foram aprovadas pelo Congresso e convertidas em lei. Em suma: vigoram entre nós 97,25% medidas provisórias não aprovadas pelo Congresso, em despeito de o Texto Constitucional literalmente determinar, como foi dito e reiterado, que tais medidas, se não aprovadas pelo Congresso em 30 dias, perdem a eficácia desde o início de sua expedição. Diante deste panorama devastador, mesmo o mais tolerante dos juristas será forçado a concluir que, no Brasil atual, só por eufemismo se pode falar em Estado Constitucional de Direito, e, pois, em democracia.” (MELLO, Celso Antonio Bandeira de. Curso de direito administrativo. 19.ed. São Paulo: Malheiros. 2009, p. 94)
[4] As ideias aqui esboçadas sobre o fenômeno da democracia delegativa partem da leitura de  STRECK, Lenio Luiz. MORAIS, José Luis Bolzan de. Ciência Política e Teoria Geral do Estado.7.ed. Porto Alegre: do Advogado. 2009

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